terça-feira, 2 de outubro de 2012

QUEBRANDO O TABU: UMA OUTRA VISÃO SOBRE O CONSUMO DE DROGAS.




O post dessa semana trata de um assunto polêmico: DROGAS. Aparentemente deixamos a Literatura e o Cinema de lado pra falar de algo que esteve presente em todos os tipos de civilização e está em nosso dia-a-dia, nos bares, nas faculdades, nos comerciais de televisão, nos filmes e dentro da sua própria casa.

O documentário acima, Quebrando o Tabu (2011), é encabeçado por ninguém mais ninguém menos que o nosso ex-presidente tucano Fernando Henrique Cardoso, e produzido por Luciano Huck. Sim, ele mesmo, Luciano Huck produzindo um documentário que debate o uso controlado de drogas e discute essa questão, apesar de não aparecer dando nenhum tipo de depoimento.

Tratar a questão como papo de viciado ou papo de maconheiro é ter uma visão superficial e equivocada do assunto. Legar aos usuários a culpa por tudo que envolve o consumo e o tráfico de drogas é uma maneira rasa de ver a questão, tirando toda a culpa de um Estado omisso. Se você acredita ser o usuário quem “financia essa porra”, como diria Capitão Nascimento, você está pensando exatamente como os meios de comunicação de massa querem que você pense.

O fato do governo não investir em educação para que as crianças da periferia não tenham que se render ao tráfico nunca é colocado em pauta; o fato de o governo não investir na qualificação da polícia não é questionado; o fato de o governo ter um sistema prisional precário que não recupera seus presos, também não é levado em consideração. Resta assim colocar a culpa em alguém sem cara, sem identidade, ou seja, no usuário. Isenta-se a culpa do governo, pois tudo isso não aconteceria se não existisse o usuário. Será mesmo?

Pior do que ser contra ou a favor a legalização ou a descriminalização das drogas, é a hipocrisia que envolve essa discussão, e aqui entramos numa questão de um discurso vinculado pela televisão que se beneficia com as desgraças promovidas pelo tráfico de drogas. Policiais invadindo favelas em busca de traficantes se transforma em novela das oito; usuários presos se transformam em Judas apedrejados por jornalistas defendendo pena de morte e outras besteiras por aí. É interessante para os meios de comunicação tratar superficialmente a questão da legalização ou descriminalização das drogas.

Muitas vezes, as pessoas que não querem discutir a questão mal sabem sobre o assunto, mal sabem o que é que se está sendo discutido ou proposto, não têm a mínima ideia de que os antidepressivos, remédios para dormir, remédios para acordar, álcool, tabaco, cafeína, açúcar, entre outras drogas, têm uma única diferença em relação à maconha: são liberados, são socialmente aceitos. Efeitos colaterais todos têm, sendo que algumas das substâncias citadas têm mais efeitos do que a própria maconha.



Muito se discute hoje sobre a legalização ou a descriminalização das drogas, principalmente a maconha, e é importante que se faça a distinção entre legalizar e descriminalizar: na Legalização ocorreria o que acontece hoje com o comércio de bebidas; o governo legaliza a produção, o consumo, a venda, fiscaliza a propaganda e coloca uma quantidade absurda de impostos para enriquecer mais e mais a nata da política brasileira. Na descriminalização ocorre algo parecido: o usuário não é mais preso por portar ou consumir determinada substância, mas está sujeito a penas como prestação de serviço comunitário ou medidas sócio-educativas.

A descriminalização deixaria de tratar o usuário como criminoso tratando-o como dependente químico, assim como tratamos os dependentes de álcool ou de comprimidos para dormir. Isso possibilitaria ao usuário cultivar sua própria planta e consumir algo plantado no próprio quintal, sem ter que procurar um traficante para comprá-la. Pode parecer absurdo que alguém seja autorizado a plantar maconha no fundo de casa, mas é isso que acontece em muitos países desenvolvidos que vêm nessa descriminalização algo que eles chamam de “política de redução de danos”.

O governo desses países parte do princípio de que a pessoa viciada em qualquer tipo de substância ilícita vai usá-la independente da proibição do governo. No entanto, com a proibição tudo fica pior, para o usuário e para a sociedade. O usuário para conseguir a droga tem que se render aos traficantes, transitar com a droga e não ser pego pela polícia; na utilização ainda corre o risco de contrair doenças transmitidas através do compartilhamento de seringas infectadas. A sociedade também é prejudicada, pois a polícia que deveria estar preocupada com outros tipos de crime, perde-se na caça de usuários com pequenas quantidades de drogas, esses usuários muitas vezes precisam roubar ou utilizam a droga em locais onde pessoas transitam a todo momento.

Com a política de redução de danos o governo literalmente reduz os danos de um usuário que já utilizaria a droga, reduzindo os riscos que o dependente e seu vício traria para a sociedade. Aconteceria o mesmo se o governo proibisse o sexo para que as pessoas não contraíssem DST’s, por exemplo; as pessoas não se importariam com a proibição e continuariam se relacionando. Partindo desse princípio, o governo distribui preservativos para que as pessoas façam sexo sem que tenham os “efeitos colaterais”: doenças, filhos não planejados, etc. Isso é uma política de redução de danos, em uma comparação bem simplista.

Alguns países fornecem uma quantidade diária de droga para o usuário, um lugar seguro e acompanhamento médico caso ele necessite. A ideia é que, se o usuário vai utilizar a droga, que ele faça em um lugar que não ofereça risco a ninguém, que ele não precise roubar para comprar a droga, utilizando algo de qualidade e recebendo orientação médica. Ao oferecer tudo isso ao usuário, o governo entende que aproximação e recuperação desses viciados se torna mais fácil. Alguns alegam que nas ruas não conseguem ajuda para sair das drogas e que diminuíram seu consumo depois que ela passou a ser disponibilizada gratuitamente e com orientação.

Mas e se não existissem usuários de drogas? E se as drogas não existissem? Alguma vez existiu um mundo sem drogas?

Criada por Robert Dudley, da Universidade da Califórnia em Berkeley, temos a Hipótese do Macaco Bêbado (40 milhões A.C). Essa teoria diz que os macacos, ao comerem as frutas caídas ao sol, ficavam literalmente “chapados”. Isso acontece porque os açúcares contidos nas frutas, ao fermentar, se transformam em álcool, que evapora indicando que a fruta está madura. Os primatas teriam desenvolvido uma atração pelo álcool que os colocariam na frente da corrida evolutiva, pois sentiam o cheiro da fruta madura permitindo o encontro dos melhores alimentos. Esse traço evolutivo teria se perpetuado pelos nossos genes, já que temos várias enzimas responsáveis pela digestão do álcool que não teriam função caso o Homem não consumisse essa substância. O alcoolismo já um problema desenvolvido a partir do momento em que o Homem começou a utilizar bebidas com alto teor alcoólico, assim como a obesidade se tornou um problema quando começamos a ter a nossa disposição mais alimentos, com mais calorias e usufruir em demasia dessa disposição.

Conta de 2700 A.C o uso de cannabis na China, de 1300 A.C na Assíria, o uso do ópio no Egito de 1000 A.C, em 500 A.C já se tomava vinho na Grécia. Em 1492 Colombo traz sementes de Cannabis às Américas, em 1600 os Árabes começaram a utilização do haxixe, em 1800 China e Inglaterra entram em guerra pelo ópio, em 1885 Freud fazia experimentos com a cocaína que na Primeira Guerra Mundial seria usada com fins medicinais. Em 1920 os EUA proibiram o álcool e criando um dos maiores “traficantes” do mundo: Al Capone. Na Década de 60 os movimentos da contracultura utilizariam as drogas como forma de se manifestar contra o conservadorismo, procurando novas formas de consciência e de comportamento. Bob Marley já cantava Legalize it, don't criticize it (...) Doctors smoke it. Nurses smoke it. Judges smoke it. Even lawyer, too.” (Legalize, não critique (...) Doutores a fumam, enfermeiras a fumam, juízes a fumam e até os advogados também a fumam).

Se não existissem usuários provavelmente não existiria a indústria farmacêutica, a indústria do álcool e do tabaco. Não veríamos propagandas de cerveja durante a tarde entre os tempos de uma partida de futebol, não tomaríamos bebidas alcoólicas em festas de criança, mas tudo isso é permitido, incentivado e dá lucro. Quem vai incentivar o uso da maconha para transtornos do sono sendo que a industria farmacêutica ganha bilhões com a venda de Bromazepan, Lexotan, Valium, Diazepam, Dalmadorm, Flurazepam, Tranxilene, Xanax, entre outros. Experimente tirar o álcool do seu pai ou o calmante de sua mãe, a reação provavelmente será a mesma daquele “drogado” dos jornais televisivos.

É preciso distinguir as coisas, como diria Tim Maia: tudo é tudo e nada é nada. Na escala de malefícios com certeza a maconha é menos nociva do que a cocaína, heroína, tabaco e álcool. Ainda não foi legalizada justamente por que somos fruto de um discurso que faz com que acreditemos no contrário, sem nos fornecer nenhum embasamento, típico de uma sociedade que simplesmente quer ver seus cidadãos alienados e sem opinião, somente reprodutores de ideias conservadoras e ultrapassadas, que visam atender a interesses de uma parcela bem específica da sociedade. É preciso tratar o usuário como um dependente químico, é preciso criar maneiras mais eficazes de se combater as drogas, e com certeza não é essa que está aí.

Esse texto tenta fornecer algum embasamento, mesmo que de maneira rápida, para incrementar a discussão em torno da legalização e descriminalização das drogas. Informe-se e não pense como a televisão quer que você pense.

Para terminar, um stand-up de Márcio Américo contrapondo os efeitos do álcool e da maconha.



Link para o download do documentário Quebrando o Tabu.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

ESTRANHAMENTO E TERROR EM “O ILUMINADO”





Quando pensamos em filmes de Terror o que logo nos vem à mente são fantasmas, corpos sendo esquartejados, histórias misteriosas, serial killers e outros elementos constitutivos de filmes que pretendem prender a atenção de quem os vê pela veia apelativa do modo como é contada a história. O suspense é deixado de lado para se trazer a tona sustos desmedidos acompanhados de uma escandalosa trilha sonora que só faz redundar o que já é expresso pelo meio imagético. As histórias geralmente começam sem a tensão de um filme de terror; é comum filmes de terror baratos começarem com amigos em acampamentos, festas, viagens, e no momento posterior todos já estão sendo perseguidos por forças sobrenaturais, loucos munidos dos mais variados objetos cortantes, num esquema antitético de “não tensão X tensão” colocado de forma escancarada, pronta para qualquer público médio entender, priorizando a ação, não a atmosfera de suspense.

Deixemos de lado as receitas prontas para pensar o que faz com que O Iluminado (1980) seja um exemplar do Terror e do Horror como opção estética e não apenas mercadológica. Saber que O Iluminado foi dirigido por Stanley Kubrick, diretor de filmes considerados obras de arte como Laranja Mecânica (1972) e 2001 – Uma odisseia no espaço (1968), e baseado no livro de mesmo nome do escritor Stephen King, outro mestre do suspense, já seria o bastante para considerá-lo um clássico, mas vamos aos elementos que compõe e justificam essa classificação.

Jack Torrance, representado no filme por Jack Nicholson, é um escritor em crise, ex-alcoólatra, que vê no emprego de zelador do Hotel Overlook a possibilidade de se refugiar do mundo a fim de retomar sua atividade literária. Junto com ele, nesse refúgio de inverno, seguem sua esposa Wendy e seu filho Danny, criança dotada de poderes sobrenaturais que se comunica com uma voz interna que dizia ser outra criança, além de se comunicar com outras pessoas de mesmo dom, os “iluminados”, que sugere o nome da obra. É no isolamento do Hotel Overlook, construído sobre um antigo cemitério indígena, que Jack Torrance, atormentado pela falta de criatividade, por transtornos psíquicos, enlouquece e tenta matar a mulher e o filho.

Desde a primeira cena, do primeiro acorde da trilha sonora, já temos uma sensação de sufocamento e desconforto, nada aconteceu ainda e já nos sentimos presos pela atmosfera de horror que envolve todo o filme, já estamos presos a algo que ainda não sabemos muito bem o que é, mas que de certa forma nos incomoda. Não há a relação dita anteriormente de “não tensão x tensão”, há pontos de tensão variados, não havendo momentos de não-tensão. Instaurada logo de início de modo menos intenso só vai se desfazer, se é que ela se desfaz, ao final do filme. 



A causa desse sufocamento e desconforto foi proposto por Freud em seu ensaio “Das Unheimliche” em que ele aborda o porquê do caráter inquietante de determinadas situações, sistematizando os apontamentos de Ernst Jentsch, que poderia ser, a grosso modo, passado para o português como “estranhamente familiar”, algo que é comum a todos nós, que deve permanecer secreto, oculto, mas que vem a tona desencadeado por circunstâncias detonadoras que serão vistas mais a frente e que servirão de base para analisar o comportamento psicótico de Jack Torrance. 

Um dos recursos mais bem sucedidos para se criar o estranhamento em uma narrativa, de acordo com Jentsch, é deixar o leitor, ou espectador, na incerteza de algo. Logo no início já percebemos a estranheza do comportamento de Jack, algo ali não está bem certo. Na entrevista de emprego, quando é contada a história do zelador que matou a família a machadadas matando-se logo depois com um tiro na boca, Jack reage como se isso fosse algo comum, a impressão é que em nada lhe afetou uma história que deixaria qualquer outro aterrorizado. Logo depois, com muita naturalidade (e estranheza), ele conta ao filho a história de uma família que, para sobreviver ao isolamento causado pela forte nevasca, tem que praticar atos de canibalismo. 

É nesse momento que surge a incerteza desencadeadora do processo de estranhamento. Jack não possui reações “normais” perante aos fatos, algo ali já nos parece estranho e perturbador. Já estaria ele afetado por alguma enfermidade psíquica? Ou por alguma entidade espiritual? A viagem e o isolamento seriam um pretexto para o assassinato da família? 

A incerteza sobre o comportamento de Jack é o que prende a atenção do espectador tornando-se um elemento importante para a caracterização da atmosfera de estranheza. O estranho, num primeiro momento, está ligado ao fato de não saber se Jack já estava louco ou se ficou louco após o isolamento. 

Após o isolamento, o comportamento de Jack se intensifica e podemos pensar nos motivos desencadeadores ditos por Freud que podem nos dar uma luz do porque de sua loucura e porque nos sentimos desconfortáveis com tais reações. O personagem Jack contempla as circunstâncias detonadoras de um desarranjo psicológico que é comum a todos nós. O primeiro é o medo da castração.

Para conseguir se manter, Jack aceita um emprego que certamente o faz se sentir rebaixado: de escritor a zelador. No entanto, vê no isolamento a possibilidade de retomar a carreira literária que já não anda bem. Assim, pode aliar duas possibilidades em uma só: a carreira de escritor, estando isolado do mundo em um trabalho que não exige muito fisicamente ele pode se dedicar a escrever; e garantir o sustento da família justamente com um trabalho pouco exigente. 

Numa crise de criatividade sua esposa o interrompe, causando grande stress em Jack que a trata de maneira estúpida, rasgando o que havia acabado de escrever. Quando novamente sua esposa o procura dizendo que uma mulher estrangulara seu filho e que seria melhor levar Danny embora, ou seja, deixar o Hotel, Jack reage agressivamente dizendo: É tão típico de você [Wendy] criar um problema assim quando eu realmente tenho a chance de conseguir alguma coisa, quando eu estou dedicado ao trabalho. Várias carreiras estariam a minha espera se voltássemos agora, não é? Tirando neve de portas, ou talvez lavando carros. Essas coisas atraem você? Wendy, até aqui eu deixei que você estragasse a minha vida, mas eu não vou deixar que você estrague isso também.

O medo da castração é algo que está em todos nós e somos castrados porque não existe a completude, porque somos regidos por algo que não conhecemos – o inconsciente – porque somos guiados por instintos que não nos levam a um objeto específico e eficaz, mas que nos guiam por diferentes pulsões que nos faz errar eternamente, transitando de objeto em objeto a fim de garantir a satisfação de nossos desejos. O medo de ser castrado, ou seja, de perder seu poder e de não ver realizado o desejo, gera uma emoção particularmente violenta e obscura. 

É isso o que acontece com Jack. Diante da possibilidade de perder suas duas chances de voltar a ser bem sucedido – objeto de seu desejo - de não ser mais um fracassado escritor nem um mero zelador de temporada, ele se torna violento, prometendo que nada o afastará de seu caminho. 

Em outra discussão com a esposa ele levanta sempre a questão de suas responsabilidades para com os patrões que depositaram confiança em seu trabalho; Jack não pode falhar, isso seria a comprovação de que ele é um fracassado, ao contrário de seu filho, que como o zelador fantasma diz “possui grandes qualidades”. Ele não possui grandes qualidades, seu filho sim, por isso tem que “aprender uma lição”. 

Um fato curioso chama a atenção: Jack Torrance é interpretado por Jack Nicholson, Danny é interpretado por Danny Lloyd, ambos interpretam personagens com seus próprios nomes. Esse fato poderia passar despercebido, mas se tratando de Stanley Kubrick, nada é por acaso. Há uma relação conturbada entre Jack e seu filho Danny e esse fato pode ter sido usado pelo diretor para reforçar o conflito entre os dois. A atenção da mulher recai toda sobre o menino que consegue ser notável, algo que Jack não consegue ser; o menino possui grandes qualidades, Jack, se as possuía, aparentemente não as possui mais. Para voltar a ter sucesso precisa eliminar aquilo que se apresenta como um obstáculo a essa realização, ou seja, seu próprio filho.

A incerteza é algo fundamental para a criação da atmosfera de Terror em O Iluminado, como já foi dito anteriormente. A dúvida sobre o que é real ou o que é puramente fantástico na obra nos deixa sem ter em que apoiar para tirar conclusões. Quando Jack conversa com os espíritos, podemos notar sempre a presença de um espelho, o que indica que o fantasma com que Jack conversa é apenas uma projeção do seu próprio ego, que Freud chama de “duplo”. 

Esse duplo é criado pelo inconsciente a fim de preservar a integridade do ego, para que ele não seja destruído. Jack, sendo ele mesmo, é tão covarde e incapaz que não consegue eliminar seu filho e sua esposa para atingir seus dois objetivos finais: cuidar do hotel e retomar sua carreira de escritor. Para conseguir tal feito, ele se projeta no personagem do zelador Delbert Grady que matou as filhas e a mulher, num processo de identificação, a fim de dar forma à realidade para um ego, criando assim outro ego, capaz de assumir as responsabilidades de tal ato. São esses “fantasmas” que o encorajam a cumprir a qualquer custo suas metas.

Sendo assim, poderíamos justificar de modo racional a aparição dos fantasmas como sendo fruto da mente de Jack. No entanto, num determinado momento, Jack é preso na despensa pela esposa. Após dormir acorda sendo chamado pelo fantasma do antigo zelador. Esse fato nos leva a pensar que esse chamado nada mais é do que uma alucinação auditiva, fruto de um distúrbio psíquico. Contudo, após a conversa em que o fantasma do zelador duvida da capacidade de ação de Jack, a porta se abre sozinha, sem a intervenção aparente de alguém ou algo “real”. Como poderia uma projeção do ego de Jack abrir uma porta trancada pelo lado de fora? É aí que novamente a incerteza nos aparece como mecanismo de estranheza e coloca O Iluminado como sendo uma obra ímpar do Terror.
Partindo para a área da interpretação através da semiótica, encontramos Greimas que desenvolve uma reflexão acerca dos mecanismos de produção de sentido. Em seu “Da Imperfeição”, Greimas aponta a descontinuidade no discurso, a fratura no cotidiano, como sendo o detonador de uma nova situação que gera o estranhamento no leitor, e aqui no caso, no espectador.

Pensando nessa ruptura, na fratura do cotidiano, podemos entender que o isolamento de Jack e sua família seja o desencadeador do estranhamento. Mas é aí que as teorias que poderiam explicar o estranho n’O Iluminado novamente não são suficientes. A ordem e a previsibilidade não se sustentam no filme.

Como já foi dito, Jack não se tornou estranho para nós após a ida para o Hotel Overlook, e a fratura sugerida por Greimas não traz a tona esse estranhamento, ela potencializa o estranhamento. Algo no comportamento do personagem já causava um desconforto, que se torna apenas mais intenso após a reclusão.

Tanto a teoria de Freud, como a teoria de Greimas não dão conta de explicar o estranhamento causado pelo filme O Iluminado. Se o fantasma do zelador é uma projeção do ego de Jack, como aponta Freud em sua teoria do “Duplo”, como teria conseguido essa projeção abrir a porta da despensa? Se o isolamento no Hotel Overlook pode ser entendida com a fratura no cotidiano de que fala Greimas, porque temos a sensação desde o início do filme de que algo já está errado com Jack?

Se desconsiderarmos totalmente o sobrenatural, poderíamos pensar que Danny, ao ouvir o pai conversando dentro da despensa, teria aberto a porta para que ele saísse, assim como poderia ter provocado os hematomas em si mesmo. No entanto, não nos é dado nenhum tipo de pista para embasar esse argumento. As alucinações são particulares de cada personagem: Jack tem visões muito sofisticadas, próprias da imaginação de um escritor, que podem ter sido influenciadas pela história que ouvira na entrevista de emprego. Danny tem visões próprias do seu dom, mesmo sem conhecer a história que envolvia o Hotel, consegue ver as meninas mortas, o que prova que ele é um “iluminado” e o único que pode salvar a todos. Wendy passa a ter visões depois de passar por um stress muito grande; a perturbadora cena em que ela vê um homem vestido de urso fazendo sexo oral em um hóspede mistura o mundo infantil com o mundo adulto, revelando o fim da inocência, da moral e da pureza.
As teorias abordadas até aqui nos dão pistas do porque O Iluminado causa tanto desconforto, estranhamento e tensão, mas o filme vai além; as teorias servem de base para uma compreensão profunda sobre o filme, mas não completa. Alguns elementos ainda nos causam estranheza sem que sua explicação seja contemplada por essas teorias. A racionalidade não explica tudo e temos que partir para o mundo do fantástico, aceitando esse cenário como sendo real e particularmente estranho pelo tempo em que somos envolvidos por ele.

Freud nos orienta no sentido de que se “o escritor cria uma espécie de incerteza em nós, a princípio, não nos deixando saber, sem dúvida propositalmente, se nos está conduzindo pelo mundo real ou por um mundo puramente fantástico, de sua própria criação (...) ele tem, de certo, o direito de fazê-lo e nós devemos nos curvar à sua decisão e considerar o cenário como sendo real, pelo tempo que nos colocarmos em suas mãos”. Assim sendo, se Shakespeare, por exemplo, nos oferece uma obra povoada por espíritos, fantasmas e demônios como em Hamlet e Macbeth, ou em sentido diferente como em A Tempestade e Sonho de uma noite de verão devemos aceitar cada uma a seu modo, respeitando a vontade do escritor ou do diretor.

Sendo assim, além do que já foi contemplado pelas teorias esboçadas acima, o que mais nos causa estranhamento em O Iluminado?

Comecemos pelo diretor. Kubrick, perfeccionista e obsessivo, dirige seus filmes quase de maneira insana, tentando tirar tudo o que uma equipe pode dar. Passou por todas as etapas da confecção de uma obra cinematográfica: fotógrafo, diretor, montador, assistente de montagem, editor de som, o que fez com que ele tivesse autoridade para colocar sua genialidade em vários aspectos de um filme.

Os cenários grandiosos e ameaçadores, os planos muito abertos que nos dão uma sensação de vazio e insegurança, o labirinto que reforça a ideia de Jack ter se perdido em sua própria mente. A câmera que corre pelos corredores labirínticos do Hotel atrás do menino com seu velotrol nos deixa em pânico a cada curva. No entanto, é a trilha sonora que merece destaque.

Estamos acostumados a ser conduzidos através da palavra, pois ela nos dá a direção do desenvolvimento da trama e acesso aos sentimentos dos personagens. No entanto Kubrick segue por outro lado. Não é o diálogo que conduz a trama; o diálogo é apenas uma das opções para conduzi-la, mas existem outras, inclusive a trilha sonora. A trilha sonora não serve como um complemento que apenas realça o que o meio imagético comunica, tocada em segundo plano para enfatizar as ações, emoções ou diálogos dos personagens, ela é colocada no mesmo plano da imagem, possuindo vida própria e narrando uma história a parte. 

Exemplo disso é que acontece em 2001 - Uma odisseia no espaço. O filme possui 141 minutos, sendo que apenas 40 são de diálogos. O que sobra são ruídos, música, respiração e silêncio, como parte integrante de uma narrativa a parte, que caminha lado a lado com a imagem, num processo de coordenação, não de subordinação.

O som desconexo com a imagem mexe com o circuito da mente do espectador. Podemos perceber isso em um ótimo exemplar, também dirigido por Stanley Kubrick: Laranja Mecânica. Algo estranho é despertado em nós no momento em que um escritor é violentamente espancado enquanto sua esposa é estuprada ao som de “Singin in the rain”. A parte auditiva do cérebro não entende aquela música de modo agressivo, sua estrutura melódica e rítmica não nos conduz a um estado de excitação ou violência; no entanto, a visão nos mostra algo completamente diverso daquilo que ouvimos; vemos uma coisa e ouvimos outra que não reforça o que se vê. A junção de dois sentidos trabalhando de modos opostos cria uma terceira percepção que nos causa um estranhamento.




N’O Iluminado a maneira como a trilha sonora causa um estranhamento difere dos outros filmes citados. Ela não age em um esquema antitético como em Laranja Mecânica, mas é responsável pela manutenção de um estado de tensão, ou seja, ela não apenas reforça as cenas que por si só já causariam um stress emocional no espectador, mas tem o poder de nos deixar apreensivos mesmo quando aparentemente nada está acontecendo no meio imagético. Na ausência de imagens que causam terror como espíritos e aparições, a trilha fica responsável por essa função. Isso mostra que a trilha pode ser um elemento a parte na criação de uma atmosfera de terror sem ter que apenas enfatizar as cenas mais intensas.
A história de arrepiar criada por um dos maiores mestres do suspense, Stephen King, que explora os medos humanos, oferece recursos ricos que se sustentam na passagem para o meio cinematográfico. Um lugar afastado e desprotegido, o medo não de um monstro, de um ser de outro planeta, de uma epidemia, mas de um membro de sua própria família, que deveria oferecer proteção. Acabamos criando uma proximidade com os personagens e o terror é despertado em nós quando percebemos que estamos indo para o mesmo caminho, perdidos no labirinto dos espaços vazios, no ambiente gelado e sem proteção.


 

A atmosfera que transita entre o real e o fantástico nos leva para um mundo cheio de incertezas. Stephen King consegue criar algo parecido com o que fez James Joyce, Tchékhov, Virgínia Woolf e Katherine Mansfield em seus contos de atmosfera.
Muitos são os elementos passíveis de análise dentro de um filme com a complexidade de O Iluminado. Passamos por seu escritor, pela mente brilhante de seu diretor, encontramos respostas nas teorias de Freud e de Greimas, que, ao mesmo tempo em que responderam, também levantaram questionamentos. Exploramos outras possibilidades, como o fantástico; foi preciso analisar elementos internos do filme como planos de câmera, trilha sonora, cenários, etc. Tudo isso ainda não dá conta de uma total explicação de uma obra como essa, mas com certeza são elementos que não podem ser desprezados na construção de um sentido de estranhamento típicos de um bom filme de Terror. 

Enquanto nos sentirmos incomodados pelo terror barato e medíocre oferecido pelos blockbusters, O Iluminado continuará sendo uma expressão máxima desse estilo, passível de muitas e muitas interpretações.

“All work and no play makes Jack a dull boy”

quarta-feira, 18 de julho de 2012

O sabor do texto de Milton Hatoum




Depois de um longo período sem publicações, volto agora com a análise do texto saboroso e bem temperado de “Dois Irmãos”, do escritor nascido em Manaus que nos transporta para esse mundo manauara tão bem conhecido por ele e tão distante de nós.

A trama gira em torno da tumultuada relação entre dois irmãos gêmeos, Yaqub e Omar, em uma família de origem libanesa que vive em Manaus.  Esse tema da briga entre dois irmãos é tão antiga quanto as histórias bíblicas como a de Caim que mata Abel, a história de Esaú e Jacó, que mais tarde é retomada por Machado de Assis, e mais recentemente em Mulheres de Areia com a história de Ruth e Raquel.

O romance narra a ascensão e decadência de uma família libanesa em Manaus, desde o ciclo da borracha até a industrialização e modernização. Junto com a modernização vem a descaracterização dos costumes e a decadência da família de Halim, a perda de identidade e a perda da memória. A venda de Halim que antes só vendia produtos da região, com o passar dos anos vai cedendo espaço para os produtos vindos de São Paulo e a filha Rania vai incorporando esse espírito “empreendedor” recorrente da região paulista, transformando-se em uma venda como outra qualquer, com produtos que podem ser encontrados em qualquer hipermercado. Perde-se a noção de exclusividade. Yaqub, o filho engenheiro e bem sucedido, mostra como o outro lado do país é melhor desenvolvido, tem mais vínculo com a modernidade, enquanto que ali só se vende os mesmos produtos.

Hatoum toca em pontos complicados das relações humanas. Narrado por um personagem que analisa a vida das personagens ao seu redor. Filho da empregada, agregado dos quartos no fundo de casa, não se intromete na vida dos patrões, mas acompanha tudo bem de perto, procurando em cada história juntar as peças do quebra cabeça de sua própria vida; quem seria seu pai: Omar ou Yaqub? Seria ele fruto de um estupro cometido por Omar ou de uma relação rápida, porém carinhosa, entre a mãe e Yaqub?

Novamente o embate entre os irmãos se faz presente. Vemos por meio de seus olhos a relação incestuosa entre os irmãos com a irmã mais nova e até com a própria mãe, ambas motivos pelo embate entre eles; a figura melancólica de Halim que vê sua imagem se desconfigurando com o passar dos anos, sendo deixado de lado como uma poltrona velha e empoeirada, cedendo lugar no coração de Zana a seus filhos. O que o narrador Nael não vê, fica sabendo através da conversa que tem com os vários personagens, testemunhas recíprocas de suas histórias.

Entre os vários personagens que transitam num colorido de personalidades, Hatoum escolhe um em especial para fazer uma referência à ditadura. Laval, professor do Liceu Rui Barbosa, admirador de poetas simbolistas franceses e defensor da liberdade, é covardemente assassinado em praça pública pelos militares. A passagem sobre sua morte é de uma poesia imensa, se tornando uma das partes mais comoventes ao nos mostrar a repressão e a violência causada pela Ditadura Militar.

Além dos temas complicados explorados por Hatoum, o que mais impressiona em seu texto é a linguagem utilizada que explora a pluralidade de enfoques, trabalha termos que migraram para a língua portuguesa pelo contato com a cultura árabe, com o Tupi e outras línguas:

“O homem que deixara a clientela do restaurante manauara com água na boca já era um exímio cozinheiro na sua Biblos natal. Cozinhava com o que havia nas casas de pedra de Jabal al Qaraqif, Jabal Haous e Jabal Laqlouq, montanhas onde a neve brilhava sob a intensidade do azul. (...) E quando visitava uma casa à beira mar, Galib levava seu peixe preferido, o sultan Ibrahim, que temperava com uma mistura de ervas cujo segredo nunca revelou. Nos restaurante manauara ele preparava temperos fortes com a pimenta-de-caiena e a murupi, misturava-as com o tucupi jambu e regava o peixe com esse molho. Havia outros condimentos, hortelã e zatar, talvez.” (p.63)

O autor explora o olhar para a Amazônia, quem vê de fora a vê de uma forma idealizada, exótica. Para o autor, narrador e personagens ela se apresenta com a lucidez melancólica de quem conhece o calor e a chuva, as águas, as frutas, pássaros e peixes, cheiros, etc. É esse estranhamento (apenas para quem é de fora) que traz a tona o regionalismo.

A ficção brasileira nasce na busca de uma expressão nacional: José de Alencar, Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Lima Barreto, Monteiro Lobato, etc. Exploração do homem no campo (Graciliano Ramos e a geração de 30 no nordeste), Érico Veríssimo no Sul e Guimarães Rosa.

A região amazônica também teve seus representantes que buscavam logo de início, com o título das obras, indicar a diferença como eram os livros de Peregrino Júnior (Pussanga -1929 e Mutupá -1933), Abguar Bastos (Terra de Icamiaba – 1937), Raimundo de Morais (Os Igaraúnas – 1938) e Dalcídio Jurandir (Marajó – 1947, Três casas e um rio – 1956, Belém do grão Pará – 1960).

No entanto, foi com Mário de Souza, em 1970, que essa narrativa ganhou expressão com o livro Galvez, o imperador do Acre (1976). Nesse livro ele tenta explorar para manter as peculiaridades culturais amazônicas como rituais e encenações indígenas. No romance mais recente Lealdade (1997) ele explora o romance histórico e narra a formação histórico-política da Amazônia. É nessa linha que segue o romance de Milton Hatoum.

O regionalismo de Hatoum está na mescla desses elementos regionais tão bem conhecidos dele e tão bem preservados na narrativa de Dois Irmãos, explorado um arco temporal que abrange várias décadas, dando conta de criar a imagem de uma sociedade com começo, meio e fim. Junto a isso temos a inspiração urbana e européia, que foram responsáveis pela formação de nossa literatura, a construção de personagens densos e bem estruturados, com suas angústias e vivências que os fazem ser universais, assim como personagens de Guimarães Rosa e Graciliano Ramos.

Em uma palestra realizada em 2010 na Faculdade de Ciências e Letras Campus Araraquara (UNESP), o escritor respondeu que não se considerava um regionalista quando lhe foi perguntado sobre a presença regionalista em sua obra. O intuito desse post não é problematizar essa questão, mas mostrar como é forte a presença desse mundo para nós imaginado e despertar o gosto por esse texto em algum possível leitor do blog. Diante disso, vale a pena encerrar com uma célebre frase de Tolstoi: “Se queres ser universal, fala da tua aldeia”. Isso Milton Hatoum fez muito bem.