quarta-feira, 26 de setembro de 2012

ESTRANHAMENTO E TERROR EM “O ILUMINADO”





Quando pensamos em filmes de Terror o que logo nos vem à mente são fantasmas, corpos sendo esquartejados, histórias misteriosas, serial killers e outros elementos constitutivos de filmes que pretendem prender a atenção de quem os vê pela veia apelativa do modo como é contada a história. O suspense é deixado de lado para se trazer a tona sustos desmedidos acompanhados de uma escandalosa trilha sonora que só faz redundar o que já é expresso pelo meio imagético. As histórias geralmente começam sem a tensão de um filme de terror; é comum filmes de terror baratos começarem com amigos em acampamentos, festas, viagens, e no momento posterior todos já estão sendo perseguidos por forças sobrenaturais, loucos munidos dos mais variados objetos cortantes, num esquema antitético de “não tensão X tensão” colocado de forma escancarada, pronta para qualquer público médio entender, priorizando a ação, não a atmosfera de suspense.

Deixemos de lado as receitas prontas para pensar o que faz com que O Iluminado (1980) seja um exemplar do Terror e do Horror como opção estética e não apenas mercadológica. Saber que O Iluminado foi dirigido por Stanley Kubrick, diretor de filmes considerados obras de arte como Laranja Mecânica (1972) e 2001 – Uma odisseia no espaço (1968), e baseado no livro de mesmo nome do escritor Stephen King, outro mestre do suspense, já seria o bastante para considerá-lo um clássico, mas vamos aos elementos que compõe e justificam essa classificação.

Jack Torrance, representado no filme por Jack Nicholson, é um escritor em crise, ex-alcoólatra, que vê no emprego de zelador do Hotel Overlook a possibilidade de se refugiar do mundo a fim de retomar sua atividade literária. Junto com ele, nesse refúgio de inverno, seguem sua esposa Wendy e seu filho Danny, criança dotada de poderes sobrenaturais que se comunica com uma voz interna que dizia ser outra criança, além de se comunicar com outras pessoas de mesmo dom, os “iluminados”, que sugere o nome da obra. É no isolamento do Hotel Overlook, construído sobre um antigo cemitério indígena, que Jack Torrance, atormentado pela falta de criatividade, por transtornos psíquicos, enlouquece e tenta matar a mulher e o filho.

Desde a primeira cena, do primeiro acorde da trilha sonora, já temos uma sensação de sufocamento e desconforto, nada aconteceu ainda e já nos sentimos presos pela atmosfera de horror que envolve todo o filme, já estamos presos a algo que ainda não sabemos muito bem o que é, mas que de certa forma nos incomoda. Não há a relação dita anteriormente de “não tensão x tensão”, há pontos de tensão variados, não havendo momentos de não-tensão. Instaurada logo de início de modo menos intenso só vai se desfazer, se é que ela se desfaz, ao final do filme. 



A causa desse sufocamento e desconforto foi proposto por Freud em seu ensaio “Das Unheimliche” em que ele aborda o porquê do caráter inquietante de determinadas situações, sistematizando os apontamentos de Ernst Jentsch, que poderia ser, a grosso modo, passado para o português como “estranhamente familiar”, algo que é comum a todos nós, que deve permanecer secreto, oculto, mas que vem a tona desencadeado por circunstâncias detonadoras que serão vistas mais a frente e que servirão de base para analisar o comportamento psicótico de Jack Torrance. 

Um dos recursos mais bem sucedidos para se criar o estranhamento em uma narrativa, de acordo com Jentsch, é deixar o leitor, ou espectador, na incerteza de algo. Logo no início já percebemos a estranheza do comportamento de Jack, algo ali não está bem certo. Na entrevista de emprego, quando é contada a história do zelador que matou a família a machadadas matando-se logo depois com um tiro na boca, Jack reage como se isso fosse algo comum, a impressão é que em nada lhe afetou uma história que deixaria qualquer outro aterrorizado. Logo depois, com muita naturalidade (e estranheza), ele conta ao filho a história de uma família que, para sobreviver ao isolamento causado pela forte nevasca, tem que praticar atos de canibalismo. 

É nesse momento que surge a incerteza desencadeadora do processo de estranhamento. Jack não possui reações “normais” perante aos fatos, algo ali já nos parece estranho e perturbador. Já estaria ele afetado por alguma enfermidade psíquica? Ou por alguma entidade espiritual? A viagem e o isolamento seriam um pretexto para o assassinato da família? 

A incerteza sobre o comportamento de Jack é o que prende a atenção do espectador tornando-se um elemento importante para a caracterização da atmosfera de estranheza. O estranho, num primeiro momento, está ligado ao fato de não saber se Jack já estava louco ou se ficou louco após o isolamento. 

Após o isolamento, o comportamento de Jack se intensifica e podemos pensar nos motivos desencadeadores ditos por Freud que podem nos dar uma luz do porque de sua loucura e porque nos sentimos desconfortáveis com tais reações. O personagem Jack contempla as circunstâncias detonadoras de um desarranjo psicológico que é comum a todos nós. O primeiro é o medo da castração.

Para conseguir se manter, Jack aceita um emprego que certamente o faz se sentir rebaixado: de escritor a zelador. No entanto, vê no isolamento a possibilidade de retomar a carreira literária que já não anda bem. Assim, pode aliar duas possibilidades em uma só: a carreira de escritor, estando isolado do mundo em um trabalho que não exige muito fisicamente ele pode se dedicar a escrever; e garantir o sustento da família justamente com um trabalho pouco exigente. 

Numa crise de criatividade sua esposa o interrompe, causando grande stress em Jack que a trata de maneira estúpida, rasgando o que havia acabado de escrever. Quando novamente sua esposa o procura dizendo que uma mulher estrangulara seu filho e que seria melhor levar Danny embora, ou seja, deixar o Hotel, Jack reage agressivamente dizendo: É tão típico de você [Wendy] criar um problema assim quando eu realmente tenho a chance de conseguir alguma coisa, quando eu estou dedicado ao trabalho. Várias carreiras estariam a minha espera se voltássemos agora, não é? Tirando neve de portas, ou talvez lavando carros. Essas coisas atraem você? Wendy, até aqui eu deixei que você estragasse a minha vida, mas eu não vou deixar que você estrague isso também.

O medo da castração é algo que está em todos nós e somos castrados porque não existe a completude, porque somos regidos por algo que não conhecemos – o inconsciente – porque somos guiados por instintos que não nos levam a um objeto específico e eficaz, mas que nos guiam por diferentes pulsões que nos faz errar eternamente, transitando de objeto em objeto a fim de garantir a satisfação de nossos desejos. O medo de ser castrado, ou seja, de perder seu poder e de não ver realizado o desejo, gera uma emoção particularmente violenta e obscura. 

É isso o que acontece com Jack. Diante da possibilidade de perder suas duas chances de voltar a ser bem sucedido – objeto de seu desejo - de não ser mais um fracassado escritor nem um mero zelador de temporada, ele se torna violento, prometendo que nada o afastará de seu caminho. 

Em outra discussão com a esposa ele levanta sempre a questão de suas responsabilidades para com os patrões que depositaram confiança em seu trabalho; Jack não pode falhar, isso seria a comprovação de que ele é um fracassado, ao contrário de seu filho, que como o zelador fantasma diz “possui grandes qualidades”. Ele não possui grandes qualidades, seu filho sim, por isso tem que “aprender uma lição”. 

Um fato curioso chama a atenção: Jack Torrance é interpretado por Jack Nicholson, Danny é interpretado por Danny Lloyd, ambos interpretam personagens com seus próprios nomes. Esse fato poderia passar despercebido, mas se tratando de Stanley Kubrick, nada é por acaso. Há uma relação conturbada entre Jack e seu filho Danny e esse fato pode ter sido usado pelo diretor para reforçar o conflito entre os dois. A atenção da mulher recai toda sobre o menino que consegue ser notável, algo que Jack não consegue ser; o menino possui grandes qualidades, Jack, se as possuía, aparentemente não as possui mais. Para voltar a ter sucesso precisa eliminar aquilo que se apresenta como um obstáculo a essa realização, ou seja, seu próprio filho.

A incerteza é algo fundamental para a criação da atmosfera de Terror em O Iluminado, como já foi dito anteriormente. A dúvida sobre o que é real ou o que é puramente fantástico na obra nos deixa sem ter em que apoiar para tirar conclusões. Quando Jack conversa com os espíritos, podemos notar sempre a presença de um espelho, o que indica que o fantasma com que Jack conversa é apenas uma projeção do seu próprio ego, que Freud chama de “duplo”. 

Esse duplo é criado pelo inconsciente a fim de preservar a integridade do ego, para que ele não seja destruído. Jack, sendo ele mesmo, é tão covarde e incapaz que não consegue eliminar seu filho e sua esposa para atingir seus dois objetivos finais: cuidar do hotel e retomar sua carreira de escritor. Para conseguir tal feito, ele se projeta no personagem do zelador Delbert Grady que matou as filhas e a mulher, num processo de identificação, a fim de dar forma à realidade para um ego, criando assim outro ego, capaz de assumir as responsabilidades de tal ato. São esses “fantasmas” que o encorajam a cumprir a qualquer custo suas metas.

Sendo assim, poderíamos justificar de modo racional a aparição dos fantasmas como sendo fruto da mente de Jack. No entanto, num determinado momento, Jack é preso na despensa pela esposa. Após dormir acorda sendo chamado pelo fantasma do antigo zelador. Esse fato nos leva a pensar que esse chamado nada mais é do que uma alucinação auditiva, fruto de um distúrbio psíquico. Contudo, após a conversa em que o fantasma do zelador duvida da capacidade de ação de Jack, a porta se abre sozinha, sem a intervenção aparente de alguém ou algo “real”. Como poderia uma projeção do ego de Jack abrir uma porta trancada pelo lado de fora? É aí que novamente a incerteza nos aparece como mecanismo de estranheza e coloca O Iluminado como sendo uma obra ímpar do Terror.
Partindo para a área da interpretação através da semiótica, encontramos Greimas que desenvolve uma reflexão acerca dos mecanismos de produção de sentido. Em seu “Da Imperfeição”, Greimas aponta a descontinuidade no discurso, a fratura no cotidiano, como sendo o detonador de uma nova situação que gera o estranhamento no leitor, e aqui no caso, no espectador.

Pensando nessa ruptura, na fratura do cotidiano, podemos entender que o isolamento de Jack e sua família seja o desencadeador do estranhamento. Mas é aí que as teorias que poderiam explicar o estranho n’O Iluminado novamente não são suficientes. A ordem e a previsibilidade não se sustentam no filme.

Como já foi dito, Jack não se tornou estranho para nós após a ida para o Hotel Overlook, e a fratura sugerida por Greimas não traz a tona esse estranhamento, ela potencializa o estranhamento. Algo no comportamento do personagem já causava um desconforto, que se torna apenas mais intenso após a reclusão.

Tanto a teoria de Freud, como a teoria de Greimas não dão conta de explicar o estranhamento causado pelo filme O Iluminado. Se o fantasma do zelador é uma projeção do ego de Jack, como aponta Freud em sua teoria do “Duplo”, como teria conseguido essa projeção abrir a porta da despensa? Se o isolamento no Hotel Overlook pode ser entendida com a fratura no cotidiano de que fala Greimas, porque temos a sensação desde o início do filme de que algo já está errado com Jack?

Se desconsiderarmos totalmente o sobrenatural, poderíamos pensar que Danny, ao ouvir o pai conversando dentro da despensa, teria aberto a porta para que ele saísse, assim como poderia ter provocado os hematomas em si mesmo. No entanto, não nos é dado nenhum tipo de pista para embasar esse argumento. As alucinações são particulares de cada personagem: Jack tem visões muito sofisticadas, próprias da imaginação de um escritor, que podem ter sido influenciadas pela história que ouvira na entrevista de emprego. Danny tem visões próprias do seu dom, mesmo sem conhecer a história que envolvia o Hotel, consegue ver as meninas mortas, o que prova que ele é um “iluminado” e o único que pode salvar a todos. Wendy passa a ter visões depois de passar por um stress muito grande; a perturbadora cena em que ela vê um homem vestido de urso fazendo sexo oral em um hóspede mistura o mundo infantil com o mundo adulto, revelando o fim da inocência, da moral e da pureza.
As teorias abordadas até aqui nos dão pistas do porque O Iluminado causa tanto desconforto, estranhamento e tensão, mas o filme vai além; as teorias servem de base para uma compreensão profunda sobre o filme, mas não completa. Alguns elementos ainda nos causam estranheza sem que sua explicação seja contemplada por essas teorias. A racionalidade não explica tudo e temos que partir para o mundo do fantástico, aceitando esse cenário como sendo real e particularmente estranho pelo tempo em que somos envolvidos por ele.

Freud nos orienta no sentido de que se “o escritor cria uma espécie de incerteza em nós, a princípio, não nos deixando saber, sem dúvida propositalmente, se nos está conduzindo pelo mundo real ou por um mundo puramente fantástico, de sua própria criação (...) ele tem, de certo, o direito de fazê-lo e nós devemos nos curvar à sua decisão e considerar o cenário como sendo real, pelo tempo que nos colocarmos em suas mãos”. Assim sendo, se Shakespeare, por exemplo, nos oferece uma obra povoada por espíritos, fantasmas e demônios como em Hamlet e Macbeth, ou em sentido diferente como em A Tempestade e Sonho de uma noite de verão devemos aceitar cada uma a seu modo, respeitando a vontade do escritor ou do diretor.

Sendo assim, além do que já foi contemplado pelas teorias esboçadas acima, o que mais nos causa estranhamento em O Iluminado?

Comecemos pelo diretor. Kubrick, perfeccionista e obsessivo, dirige seus filmes quase de maneira insana, tentando tirar tudo o que uma equipe pode dar. Passou por todas as etapas da confecção de uma obra cinematográfica: fotógrafo, diretor, montador, assistente de montagem, editor de som, o que fez com que ele tivesse autoridade para colocar sua genialidade em vários aspectos de um filme.

Os cenários grandiosos e ameaçadores, os planos muito abertos que nos dão uma sensação de vazio e insegurança, o labirinto que reforça a ideia de Jack ter se perdido em sua própria mente. A câmera que corre pelos corredores labirínticos do Hotel atrás do menino com seu velotrol nos deixa em pânico a cada curva. No entanto, é a trilha sonora que merece destaque.

Estamos acostumados a ser conduzidos através da palavra, pois ela nos dá a direção do desenvolvimento da trama e acesso aos sentimentos dos personagens. No entanto Kubrick segue por outro lado. Não é o diálogo que conduz a trama; o diálogo é apenas uma das opções para conduzi-la, mas existem outras, inclusive a trilha sonora. A trilha sonora não serve como um complemento que apenas realça o que o meio imagético comunica, tocada em segundo plano para enfatizar as ações, emoções ou diálogos dos personagens, ela é colocada no mesmo plano da imagem, possuindo vida própria e narrando uma história a parte. 

Exemplo disso é que acontece em 2001 - Uma odisseia no espaço. O filme possui 141 minutos, sendo que apenas 40 são de diálogos. O que sobra são ruídos, música, respiração e silêncio, como parte integrante de uma narrativa a parte, que caminha lado a lado com a imagem, num processo de coordenação, não de subordinação.

O som desconexo com a imagem mexe com o circuito da mente do espectador. Podemos perceber isso em um ótimo exemplar, também dirigido por Stanley Kubrick: Laranja Mecânica. Algo estranho é despertado em nós no momento em que um escritor é violentamente espancado enquanto sua esposa é estuprada ao som de “Singin in the rain”. A parte auditiva do cérebro não entende aquela música de modo agressivo, sua estrutura melódica e rítmica não nos conduz a um estado de excitação ou violência; no entanto, a visão nos mostra algo completamente diverso daquilo que ouvimos; vemos uma coisa e ouvimos outra que não reforça o que se vê. A junção de dois sentidos trabalhando de modos opostos cria uma terceira percepção que nos causa um estranhamento.




N’O Iluminado a maneira como a trilha sonora causa um estranhamento difere dos outros filmes citados. Ela não age em um esquema antitético como em Laranja Mecânica, mas é responsável pela manutenção de um estado de tensão, ou seja, ela não apenas reforça as cenas que por si só já causariam um stress emocional no espectador, mas tem o poder de nos deixar apreensivos mesmo quando aparentemente nada está acontecendo no meio imagético. Na ausência de imagens que causam terror como espíritos e aparições, a trilha fica responsável por essa função. Isso mostra que a trilha pode ser um elemento a parte na criação de uma atmosfera de terror sem ter que apenas enfatizar as cenas mais intensas.
A história de arrepiar criada por um dos maiores mestres do suspense, Stephen King, que explora os medos humanos, oferece recursos ricos que se sustentam na passagem para o meio cinematográfico. Um lugar afastado e desprotegido, o medo não de um monstro, de um ser de outro planeta, de uma epidemia, mas de um membro de sua própria família, que deveria oferecer proteção. Acabamos criando uma proximidade com os personagens e o terror é despertado em nós quando percebemos que estamos indo para o mesmo caminho, perdidos no labirinto dos espaços vazios, no ambiente gelado e sem proteção.


 

A atmosfera que transita entre o real e o fantástico nos leva para um mundo cheio de incertezas. Stephen King consegue criar algo parecido com o que fez James Joyce, Tchékhov, Virgínia Woolf e Katherine Mansfield em seus contos de atmosfera.
Muitos são os elementos passíveis de análise dentro de um filme com a complexidade de O Iluminado. Passamos por seu escritor, pela mente brilhante de seu diretor, encontramos respostas nas teorias de Freud e de Greimas, que, ao mesmo tempo em que responderam, também levantaram questionamentos. Exploramos outras possibilidades, como o fantástico; foi preciso analisar elementos internos do filme como planos de câmera, trilha sonora, cenários, etc. Tudo isso ainda não dá conta de uma total explicação de uma obra como essa, mas com certeza são elementos que não podem ser desprezados na construção de um sentido de estranhamento típicos de um bom filme de Terror. 

Enquanto nos sentirmos incomodados pelo terror barato e medíocre oferecido pelos blockbusters, O Iluminado continuará sendo uma expressão máxima desse estilo, passível de muitas e muitas interpretações.

“All work and no play makes Jack a dull boy”