sábado, 2 de junho de 2012

Fahrenheit 451 – Estaríamos nós queimando livros?


Começo do ano, mês de Janeiro, todos de férias cheios de nada pra fazer e eis que surge o BBB 12. Euforia para todo lado, uns defendem; outros criticam; alguns criticam os que defendem e, os que defendem acusam os que criticam de falsos intelectuais. Por isso esse post não está atrasado cinco meses e sim adiantado seis meses justamente para não ser acusado nem defendido por nenhum fanático. A distância temporal, tanto do que se passou quanto do que há por vir, me garante certa isenção para começar meu assunto a partir do famigerado BBB.

No calor da discussão via Facebook, circulou uma montagem com os dizeres “A cada vez que você assiste BBB um livro comete suicídio”. O que essa montagem queria dizer era justamente o que a MTV disse durante bastante tempo com o seu “Desligue a televisão e vá ler um livro”, deixando de exibir sua programação normal para deixar uma tela preta com essa frase, no intuito de que se aproveitasse esse tempo sem programação para ler algo. Não vamos discutir aqui a validade dessas manifestações. Em um país onde a televisão chegou antes de se criar o hábito da leitura, romper com essa “tradição” não é tão simples assim.

O intuito desse texto é discutir, partindo dessa imagem de “protesto”, a relação leitura vs cultura de massa, analisar um filme que aborda com mais profundidade essa relação e outros temas como a dominação dos meios de comunicação: Fahrenheit 451 é baseado no romance homônimo de Ray Bradbury e dirigido por François Truffaut em 1966. No filme não há o suicídio dos livros, mas uma alegoria próxima a essa; no filme há a queima dos livros.

 



O fato de queimar um livro pode ser interpretado como o desprezo e descaso que a sociedade tem pelo mesmo, e isso se dá não só pela opção de se assistir a um programa de televisão. A leitura não é algo instigado pelas escolas ou pela televisão (maior meio de comunicação disputando, talvez, esse posto com a internet). Não há a disseminação da ideia de que a leitura é importante para a formação de um cidadão reflexivo e crítico, e quando há algo relacionado à literatura nas escolas é dado de maneira desinteressada e chata por parte de alguns professores, que mesmo no posto em que estão não acreditam naquilo que lecionam.

O governo não investe em educação e leitura e consequentemente queima livros quando deixa de criar bibliotecas, quando deixa de criar programas que incentivem a leitura ou que permita o acesso aos livros por parte da população de baixa renda, que não dá subsídios para que os livros sejam mais baratos e acessíveis e nesse ponto as editoras também queimam seus próprios livros.

Nós, estudantes de letras, queimamos nossos livros cada vez que deixamos de ler uma obra e interpretá-la de acordo com nosso ponto de vista para ler apenas a crítica e reproduzi-la como se a leitura dos teóricos fosse a única e absoluta verdade acerca da obra em pauta. Todorov, em seu livro “Literatura em perigo” critica esse “hábito” dos professores de priorizarem a teoria a respeito das obras em vez de fazer com que os alunos apreciem a obra, se deliciem com o primeiro contato, sem que esse seja intermediado por um teórico ou até mesmo pelo próprio professor. Depois desse primeiro contato com a literatura de fato, depois das primeiras impressões o aluno procuraria embasamento teórico para enriquecer o conhecimento a respeito do que foi lido. Sabemos que nem sempre é assim que acontece.

Em um primeiro momento podemos ter a ideia de que a narrativa apresenta uma sociedade extremamente autoritária contra a liberdade de expressão, fazendo uma clara referência aos sistemas rigorosos e endurecidos que estavam se instalando em várias partes do mundo. Essa é uma das leituras que se pode fazer da obra. A outra, no entanto, que mais nos interessa, é a relação entre literatura e cultura de massa.

A cultura de massa, através dos meios de comunicação de massa, principalmente a televisão, transforma a cultura dita clássica ou erudita em um produto de mais fácil acesso às classes mais baixas, tornando-a mais fácil, mais compreensiva, acessível a todos, homogeneizando-a e simplificando-a para aproximá-la do gosto médio.

No filme temos a caça aos livros pelos bombeiros e a idolatria da televisão por parte da personagem Linda. A televisão substituira o livro e vários podem ser os motivos. Após o invento da fotografia e consequentemente do cinema e da televisão, a sociedade passa a se guiar muito mais pela imagem e, principalmente, da imagem em movimento, que não exige um esforço, seja ele de atenção, inteligência, sensibilidade ou memória, como cita José Paulo Paes no livro “A aventura literária”.

Com isso, percebemos que a cultura de massa, representada no filme pela televisão, tem o papel de afastar as pessoas da literatura, como a televisão destrói o interesse pelos livros. Na televisão tudo é mais fácil, em uma ou duas horas consegue-se apreciar um romance ou uma história de suspense que um livro precisaria de trezentas, quatrocentas páginas ou mais para contar, ganha-se tempo e perde-se em qualidade.

Podemos pensar o filme também considerando sua época de lançamento. O filme é da década de 60 e ela pode ser pensada em duas metades: a primeira metade mais idealista, marcada pelos ideais de liberdade e mudança iniciados nos anos 50. Na segunda metade perde-se essa inocência e parte-se para um movimento de mudança mais agressivo, trazendo consigo a revolução sexual, as experiências com drogas, os protestos estudantis, etc. O medo da repressão por parte dos governos também se torna uma constante nessa época. No Brasil temos o golpe de 64 e em 69 o pior ato contra a liberdade de expressão, o AI-5.

Esse “medo” da repressão, ou somente a possibilidade dela, é o que conseguimos perceber no filme. Uma sociedade extremamente manipulada em que a liberdade de expressão é totalmente censurada. Os cidadãos não têm direito mais a sua individualidade, e podemos perceber isso quando jovens com os cabelos longos são presos e tem os cabelos cortados.

A mídia manipula a opinião social, fazendo-a acreditar que os perigosos criminosos estão sendo devidamente punidos, tudo em nome da paz e da liberdade dos homens de “bens”, é a repressão pela liberdade. Os livros são deixados de lado pois o governo entende que eles são perigosos demais e podem influenciar a opinião das pessoas, fazendo com que elas se rebelem contra o estado, e esse passa então a controlar os meios de informação.

Guardadas as devidas proporções, se pensarmos na sociedade de hoje como sendo a sociedade do futuro imaginada no filme da década de 60, percebemos cada vez mais a rapidez com que as pessoas buscam informação e divertimento deixando de lado a reflexão e o pensamento, tudo está a um clique, estão todos muito cheios de nada, cheios de vazio, há muita informação e pouco conhecimento, opiniões borbulham por todos os cantos da internet, há um falatório sem sentido e sem embasamento, todos se acham críticos de cinema, de música, de literatura, todos podem criticar um vídeo no youtube ou um post em um blog qualquer de acordo com o “conhecimento” adquirido há segundos atrás na Wikipédia.

Podemos fazer uma síntese desses dois tempos a partir do pensamento de dois escritores que pensaram em sociedades a frente de seu tempo. A década de 60 pode ser comparada ao pensamento do escritor George Orwel, que tinha medo de que os livros fossem censurados por um estado autoritário que não permitiria o acesso das pessoas aos materiais que julgasse contra as regras da sociedade que impunha. Os dias atuais podem ser comparados à ideia de Aldous Huxley, que acreditava que não seria necessário um governo proibir o acesso aos livros porque as pessoas sozinhas não teriam interesse em lê-los. Estamos em uma época em que temos mais acesso à informação e conhecimento do que qualquer outra na história da humanidade - acesso a filmes, livros, música em um clique - e em que menos pessoas fazem um uso dessa vantagem para algo realmente produtivo e útil para si e para a humanidade, basta pensar no que são as “Luísas” e “Para nossa alegria” que nos atormentam a cada semana. 

A imagem abaixo ilustra bem a ideia dos dois autores. Para ver a comparação completa, acesse o site: http://oitudoemcima.com/2010/08/30/aldous-huxley-x-george-orwell/.


A já citada Linda Montag tem um papel muito importante na obre. Esposa de Guy Montag, apresenta uma antítese ao papel da personagem Clarisse Maclellan, vizinha que o conhece nas diárias viagens de trem comuns aos dois. Enquanto Linda é vazia de pensamentos, superficial no modo de falar e de se expressar, depressiva - embora tente a todo o momento mostrar que é feliz – tenta se enquadrar e ser aceita pelos membros de uma sociedade que vive de aparência e de relações fúteis e sem conteúdo, Clarisse, agindo de modo contrário, é uma mulher feliz, bem resolvida, extrovertida e questionadora.

Linda representa o senso comum, facilmente influenciável pelas opiniões de massa. Tenta manter a todo custo as aparências, como se nada tivesse acontecido ou acontecendo, aceita de maneira fácil e sem questionamento os fatos que a rodeiam. Ela não concorda com o marido quando ele começa a questionar os acontecimentos a sua volta ou quando ele resolve, por curiosidade, ler os livros que rouba antes que sejam incendiados.

Podemos compará-la com Meryl, esposa de Truman em “O show de Truman”. A todo o momento ela tenta passar uma falsa ideia de que tudo está correndo bem e de que deve permanecer assim, nada deve ser mudado e Truman deve desistir de seus pensamentos questionadores e libertários. Em Fahrenheit, Linda talvez nem tenha consciência do lugar onde vive e de qual sua função social, e opta por manter tudo como está simplesmente por ser mais fácil ou por desconhecer outra “realidade”. Em “O show de Truman”, Meryl tem que manter Truman em seu “caminho planejado” por motivos comerciais, pois do contrário o reality acabaria.

O papel de Clarisse Maclellan já é justamente questionar a realidade que a cerca e despertar o senso crítico no personagem principal, Montag. Sylvia, em “O show de Truman”, tem o mesmo papel antitético de Clarisse. É ela quem desperta os primeiros pensamentos questionadores de Truman, também personagem principal, e é a partir desse primeiro estímulo, dado tanto por Clarisse em Fahrenheit, quanto por Sylvia em “O show de Truman”, que os dois personagens principais começam a mudança de uma atitude ignorante, do senso comum, para uma atitude mais “filosófica”, questionadora, que busca a verdade.

O filme nos mostra, entre outras coisas, de modo mais aprofundado o que o suicídio dos livros citados na montagem representa. No entanto, não podemos ser tão críticos com os que assistem o BBB ou qualquer outro tipo de entretenimento vazio, muitos ainda são Linda Montag, outros começam a se transformar em Guy Montag e alguns podem ser considerados Clarisse Maclellan. E nós, em qual nível estamos?


Um comentário:

  1. Gostei muito de seu texto! No meu cotidiano esbarro em vários problemas gerados pelo que chamo de "preguiça mental". Coisas pequenas que seriam evitadas se simplesmente as pessoas conseguissem ler e interpretar o que é solicitado, em lugar de simplesmente repetir fórmulas genéricas decoradas. Parabéns!

    ResponderExcluir