Depois de um longo período sem publicações,
volto agora com a análise do texto saboroso e bem temperado de “Dois Irmãos”, do
escritor nascido em Manaus que nos transporta para esse mundo manauara tão bem
conhecido por ele e tão distante de nós.
A
trama gira em torno da tumultuada relação entre dois irmãos gêmeos, Yaqub e Omar, em uma família de
origem libanesa que vive em Manaus. Esse
tema da briga entre dois irmãos é tão antiga quanto as histórias bíblicas como
a de Caim que mata Abel, a história de Esaú e Jacó, que mais tarde é retomada
por Machado de Assis, e mais recentemente em Mulheres de Areia com a história
de Ruth e Raquel.
O
romance narra a ascensão e decadência de uma família libanesa em Manaus, desde
o ciclo da borracha até a industrialização e modernização. Junto com a
modernização vem a descaracterização dos costumes e a decadência da família de
Halim, a perda de identidade e a perda da memória. A venda de Halim que antes
só vendia produtos da região, com o passar dos anos vai cedendo espaço para os
produtos vindos de São Paulo e a filha Rania vai incorporando esse espírito
“empreendedor” recorrente da região paulista, transformando-se em uma venda
como outra qualquer, com produtos que podem ser encontrados em qualquer
hipermercado. Perde-se a noção de exclusividade. Yaqub, o filho engenheiro e
bem sucedido, mostra como o outro lado do país é melhor desenvolvido, tem mais
vínculo com a modernidade, enquanto que ali só se vende os mesmos produtos.
Hatoum
toca em pontos complicados das relações humanas. Narrado por um personagem que
analisa a vida das personagens ao seu redor. Filho da empregada, agregado dos
quartos no fundo de casa, não se intromete na vida dos patrões, mas acompanha
tudo bem de perto, procurando em cada história juntar as peças do quebra cabeça
de sua própria vida; quem seria seu pai: Omar ou Yaqub? Seria ele fruto de um
estupro cometido por Omar ou de uma relação rápida, porém carinhosa, entre a
mãe e Yaqub?
Novamente
o embate entre os irmãos se faz presente. Vemos por meio de seus olhos a
relação incestuosa entre os irmãos com a irmã mais nova e até com a própria
mãe, ambas motivos pelo embate entre eles; a figura melancólica de Halim que vê
sua imagem se desconfigurando com o passar dos anos, sendo deixado de lado como
uma poltrona velha e empoeirada, cedendo lugar no coração de Zana a seus filhos.
O que o narrador Nael não vê, fica sabendo através da conversa que tem com os
vários personagens, testemunhas recíprocas de suas histórias.
Entre os vários
personagens que transitam num colorido de personalidades, Hatoum escolhe um em
especial para fazer uma referência à ditadura. Laval, professor do Liceu Rui Barbosa,
admirador de poetas simbolistas franceses e defensor da liberdade, é
covardemente assassinado em praça pública pelos militares. A passagem sobre sua
morte é de uma poesia imensa, se tornando uma das partes mais comoventes ao nos
mostrar a repressão e a violência causada pela Ditadura Militar.
Além dos
temas complicados explorados por Hatoum, o que mais impressiona em seu texto é
a linguagem utilizada que explora a pluralidade de enfoques, trabalha termos
que migraram para a língua portuguesa pelo contato com a cultura árabe, com o Tupi
e outras línguas:
“O homem que deixara a clientela do
restaurante manauara com água na boca já era um exímio cozinheiro na sua Biblos
natal. Cozinhava com o que havia nas casas de pedra de Jabal al Qaraqif, Jabal
Haous e Jabal Laqlouq, montanhas onde a neve brilhava sob a intensidade do
azul. (...) E quando visitava uma casa à beira mar, Galib levava seu peixe
preferido, o sultan Ibrahim, que temperava com uma mistura de ervas cujo
segredo nunca revelou. Nos restaurante manauara ele preparava temperos fortes
com a pimenta-de-caiena e a murupi, misturava-as com o tucupi jambu e regava o
peixe com esse molho. Havia outros condimentos, hortelã e zatar, talvez.”
(p.63)
O autor explora o olhar para a Amazônia, quem vê de fora a vê de uma
forma idealizada, exótica. Para o autor, narrador e personagens ela se
apresenta com a lucidez melancólica de quem conhece o calor e a chuva, as
águas, as frutas, pássaros e peixes, cheiros, etc. É esse estranhamento (apenas
para quem é de fora) que traz a tona o regionalismo.
A ficção brasileira nasce na busca de uma expressão nacional: José de
Alencar, Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Lima Barreto, Monteiro Lobato, etc.
Exploração do homem no campo (Graciliano Ramos e a geração de 30 no nordeste),
Érico Veríssimo no Sul e Guimarães Rosa.
A região amazônica também teve seus representantes que buscavam logo de
início, com o título das obras, indicar a diferença como eram os livros de
Peregrino Júnior (Pussanga -1929 e Mutupá -1933), Abguar Bastos (Terra de
Icamiaba – 1937), Raimundo de Morais (Os Igaraúnas – 1938) e Dalcídio Jurandir
(Marajó – 1947, Três casas e um rio – 1956, Belém do grão Pará – 1960).
No entanto, foi com Mário de Souza, em 1970, que essa narrativa ganhou
expressão com o livro Galvez, o imperador do Acre (1976). Nesse livro ele tenta
explorar para manter as peculiaridades culturais amazônicas como rituais e
encenações indígenas. No romance mais recente Lealdade (1997) ele explora o
romance histórico e narra a formação histórico-política da Amazônia. É nessa
linha que segue o romance de Milton Hatoum.
O regionalismo de Hatoum está na mescla desses elementos regionais tão
bem conhecidos dele e tão bem preservados na narrativa de Dois Irmãos,
explorado um arco temporal que abrange várias décadas, dando conta de criar a
imagem de uma sociedade com começo, meio e fim. Junto a isso temos a inspiração
urbana e européia, que foram responsáveis pela formação de nossa literatura, a
construção de personagens densos e bem estruturados, com suas angústias e
vivências que os fazem ser universais, assim como personagens de Guimarães Rosa
e Graciliano Ramos.
Em uma palestra realizada em 2010 na Faculdade de Ciências e Letras Campus
Araraquara (UNESP), o escritor respondeu que não se considerava um regionalista
quando lhe foi perguntado sobre a presença regionalista em sua obra. O intuito
desse post não é problematizar essa questão, mas mostrar como é forte a
presença desse mundo para nós imaginado e despertar o gosto por esse texto em
algum possível leitor do blog. Diante disso, vale a pena encerrar com uma célebre
frase de Tolstoi: “Se queres ser universal, fala da tua aldeia”. Isso
Milton Hatoum fez muito bem.
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