Ao falar de autores italianos,
sempre nos vem à cabeça os mesmos autores: Dante, Ítalo Calvino, Umberto Eco e
talvez um Pirandello, diferente de quando conversamos com alguém a respeito de
autores franceses, por exemplo, que aparentemente são mais numerosos, mais
influentes, ou seja, quando vamos falar de autores que influenciaram algum
movimento literário, ou são referência para alguma obra, costumamos lembrar
sempre de autores ingleses, franceses, alemães, deixando, na maioria das vezes,
os italianos de lado, a não ser quando falamos de Camões e automaticamente
lembramos dos sonetos de Petrarca ou da Divina Comedia para compará-la, sob
alguns aspectos, com Os Lusíadas. Enfim, a quantidade de autores, que não
italianos, são mais lembrados nas mais variadas ocasiões.
Alguns dizem - e nesses “alguns” eu
incluo teóricos e professores – que muito do que foi feito, principalmente pelos
franceses e ingleses, é uma espécie de adaptação de histórias nascidas em
território italiano, das quais, por exemplo, Shakespeare teria se aproveitado
para criar duas de suas principais obras: Hamlet e Romeu e Julieta, e que
teriam ganhado popularidade não pela sua origem italiana, mas pelas suas
adaptações ou produto de suas influências, por artistas de países mais
expansivos e consequentemente populares e influentes como por exemplo a França,
que fez a história de Pierrot ser mais conhecida pela sua variante do que pela
original criação na Commedia dell’Arte italiana.
Isso se deve um pouco pelo fato de
que, enquanto a França entrava em um processo expansionista com Napoleão, a
Inglaterra com o seu processo de industrialização, a Itália lutava para
conseguir se unificar. Isso se reflete profundamente em sua literatura, basta
ler um dos principais livros italianos “I promessi sposi” (Os noivos – no Brasil)
de Alessandro Manzoni, único representante do romantismo que, mesmo sendo
romântico, não apresenta características desse movimento como por exemplo a
idealização, que não cabia naquele momento, carente de transformações reais.
Fatos esses fazem com que alguns
bons autores italianos sejam esquecidos pelo grande público leitor. Como aluno
do curso de Letras e estudante de italiano vou no decorrer dos tempos
comentando alguns autores interessantes.
Comecemos falando de um autor que
teve sua obra por muito tempo comparada a de Franz Kafka, por conterem temas em
comum como o escárnio e expressão de impotência enfrentada diante de um mundo
incompreensível, podendo também ser comparado com as obras de Camus e Sartre. Em suas
histórias há o predomínio do mágico, do inesperado, o leitor fica preso à
história até o último momento à espera de saber o que vai acontecer, se
acontecerá algo inexplicável, ou se acontecerá o mais comum, tudo fica suspenso
até a última linha. Atrás da aparente leveza da narrativa de conto de fadas
estão as importantes questões abordadas pelo autor. Seu nome é DINO BUZZATI.
Escreveu romances, peças de teatro,
peças para rádio, livretos, poesia, contos, contos com animais fantásticos,
vários relatos para jornais; escreveu um livro infantil e um livro de comédia;
elaborou roteiros de cinema e artigos.
O conto “Sete andares” apresenta
algumas características fantásticas. Sete andares conta a história de Giuseppe
Corte, que ao chegar em uma cidade resolve procurar uma famosa clínica para se
curar de uma doença. Logo de início, o edifício lhe causara boa impressão, lembrava
muito um hotel. Ao entrar, passa por um consulta superficial e é encaminhado
para o sétimo andar. O hospital abriga, de andar em andar, os casos leves da
doença, progressivamente, até o primeiro, destinado aos moribundos.
A grande sacada do conto é que o
protagonista vai sendo rebaixado de nível, portanto piorando progressivamente,
sem que sua doença agrave, sem que ele mereça ser rebaixado por motivos de
doença, cada vez que o rebaixam de degrau no hospital não o fazem por motivos lógicos,
aliás, eles não agem de modo lógico no hospital; um paciente que é transferido
para uma sala de cirurgia só porque seu quarto está com problemas, não pode ser
submetido a uma cirurgia por esse fato. A analogia serve para ilustrar o que
acontece no conto.
Podemos começar a análise do conto
com a simbologia do número sete. Na cultura cristã, o algarismo sete
corresponde a sete céus, sete sóis, sete esferas da antiga astrologia
hermética: Sol, Lua, Mercúrio, Marte, Vênus, Júpiter e Saturno; as sete
virtudes cristãs (as teologias: fé, esperança e caridade; as cardeais: força,
temperança, justiça e prudência); os sete pecados capitais: orgulho, preguiça,
inveja, cólera, luxúria, gula e avareza; os sete sacramentos: batismo,
eucaristia, ordem, confirmação, casamento, penitência e extrema-unção; os sete
dias da criação do mundo narrados no gênesis, sete tabernáculos e sete
trombetas de Jericó; no Apocalipse temos os sete candelabros, sete estrelas,
sete selos, sete cornos, sete pragas e sete raios. Pode ainda corresponder às
cores do arco-íris, as sete notas da escala musical.
Além dessas várias interpretações
acerca do número sete, Chevalier e Gheerbrant consideram que ele simboliza “os
sete graus de perfeição”, e que se refere ao ciclo positivo de mudança.
Temos então no início da narrativa a
junção do número sete (representando a mudança positiva), o fato de a clínica
ser a melhor para se tratar aquele tipo de doença e o fato de Giuseppe
apresentar um quadro leve, indicando que ele não precisaria de tantos cuidados.
Esses fatos juntos levam o leitor a pensar que o desfecho será favorável, criando
a expectativa de que ao entrar na clínica ele sairia completamente curado.
Essa expectativa se dá do início até
o fim da narrativa e é reforçada pelo uso do narrador onisciente,
distanciando-se dos juízos de valor acerca da doença de Giuseppe. Se o narrador
fosse o próprio personagem poderia haver uma opinião tendenciosa em relação a
sua própria doença, seria a sua opinião e nós leitores não teríamos como
confrontá-la.
No entanto, essa expectativa vai
sendo quebrada ao longo da narrativa na relação de oposição entre a vontade do
indivíduo, ou seja, do próprio Giuseppe, e da instituição, ou seja, o hospital.
Desde o momento em que Giuseppe entra no
hospital e vai para o sétimo andar o narrador faz questão de manter um
distanciamento entre ele, que possui levemente uma doença, e os pacientes do
primeiro andar, que já não tem mais salvação. Esse distanciamento serve para acentuar
o impacto na inversão que ocorrerá na narrativa, seria um absurdo um homem que
está apenas com uma leve febre ser colocado num andar com pessoas perto da
morte, no entanto é isso que o desenrolar da história vai nos mostrando.
O comentário feito pelo personagem
quando o enfermeiro lhe pede que se mude de quarto e de andar já mostra como o
humor negro conduzirá a narrativa, pois, do mesmo modo que o leitor cria uma
expectativa positiva em relação ao destino do personagem, o próprio personagem
também cria uma expectativa positiva em relação ao seu destino. Quando ele diz:
“- Será (...) - Mas parece-me de mau
agoiro.”, já começa a intuir que algo poderá dar errado com a sua estadia no
hospital.
Conforme Giuseppe vai sendo
rebaixado seu ânimo vai piorando, como se ele fosse afetado pelo meio em que
estava, sua doença vai piorando ao invés de melhorar, ele vai percebendo que
não pode lutar contra uma estrutura tão bem organizada como a do hospital. Neste
momento podemos perceber também a transição na postura de Giuseppe, no início
ele tem uma postura firme e vai aos poucos passando para uma possível
passividade, que será intercalada com momentos de contestação, que dão um tom
de humor ao conto.
A todo o momento Giuseppe vai sendo
convencido de que deve ir para um andar mais baixo do hospital e o leitor
começa a perceber que o motivo de sua piora pode ser o próprio hospital, lugar
calmo e tranqüilo mas que se apresenta de modo enlouquecedor e de certa forma
engraçado. As pessoas não se ouvem e parecem não ouvir o paciente, dando a
impressão de que algo está sendo escondido e de que há algo pretendido com o
“rebaixamento” do paciente. Este, por sua vez, se vê preso em uma maluca
estrutura organizacional como se fosse uma marionete, a mercê do controle
autoritário do hospital.
Através dessa estrutura “surda” e
enlouquecedora Giuseppe vai passando por todos os andares até que chega ao
primeiro andar, aproximando-se do seu final, aproximando-se do final de sua
“via crucis (...) que se encerra perto das três da tarde, suposto horário da
morte de Cristo.”
Com esse desfecho, cômico e
desesperador, Dino Buzzati quebra com tudo que poderia ser esperado no inicio
da narrativa. Ele expõe o despreparo humano diante do inesperado, diante da
confrontação e critica a passividade diante das injustiças.
O momento em que foi escrito o conto
(1942) era propicio a esse tipo de crítica, Hitler, Mussolini e seus sistemas
autoritários estavam ainda em plena forma, mesmo que alguns já conseguissem
visualizar seu fim.
Do mesmo modo como Giuseppe foi
conduzido ao seu fim, autoritariamente e sem explicação, manipulado pelos
mandos e desmandos do hospital, a sociedade italiana, entre outras, também se
viam presas a regimes autoritários que faziam o que bem entendiam com a
população, essa sempre a acreditar que tudo poderia melhorar e que logo eles
voltariam ao sétimo andar.
O conto é muito instigante e faz
pensar sobre muitos aspectos da nossa própria realidade, o modo como às vezes
somos conduzidos para o primeiro andar sem nem perceber. Vale a pena lê-lo.
Texto disponível no blog: http://cabana-on.com/Contos/Ficcao/ficcao28.html
Quer saber mais sobre o surrealismo e sobre outros contos de Dino Buzzati? Nesse link está disponível uma dissertação que detalha mais o autor: http://ebookbrowse.com/dissertacao-paula-parise-pinto-pdf-d50693543
Muito bom destacar um autor que não está entre os "grandes". Nos faz ver como a cultura italiana é ainda mais vasta do que imaginamos.
ResponderExcluirConheço a obra de Buzatti ha muitos anos...em verdade, considero sua escrita mais bem elaborada do que a de Kafta.
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