Noite de terça feira e, apesar do cansaço e a vontade de
dormir, acabo sentando em frente à TV. Mudando os canais vejo que o SBT está
passando (pela 1000ª vez) “A fantástica fábrica de chocolate”. Novamente deixo
meu medo dos Oompa-Loompas de lado e resolvo assistir ao filme.
Falar de Tim Burton e Johnny Depp é chover no molhado. Já
está mais do que provado que a parceria entre os dois é um sucesso. A atmosfera
criada por Tim Burton, não só nesse filme, como em outros de sua direção, é
algo fantástico (com o perdão do trocadilho). Cenários surreais, cores em
demasia e um mundo onírico. Johnny Depp não deixa pra trás e com suas
interpretações dá vida aos personagens que estão na cabeça do Sr. Burton. A
análise desses elementos e dessa parceria fica para uma próxima vez.
O que me deixou mais espantado nesse filme, algo que eu já
tinha percebido outras vezes, que pode não ser novidade para ninguém, mas que
dessa vez foi mais intensa a ponto de me levar a escrever essas
inconsistências, foi o fato de que esse filme é algo tenebroso, que passa longe
de ser um filme para criança ou engraçado no sentido pastelão zorra total ou
comédia estilo Adam Sandler ou que vai te fazer relaxar e dar boas risadas. Seu
humor, ou poderíamos dizer sarcasmo, é inteligente e incômodo.
Mas vamos ao que interessa. Porque transtornos psicológicos
e pecados capitais? Se pensarmos na figura do personagem Willy
Wonka.perceberemos a relação desses três “temas” e como elas aparecem no filme.
Como dono da fábrica de chocolates, resolve abrir um
concurso para escolher uma criança para herdar seu patrimônio. Para isso,
esconde tíquetes dourados em barras de chocolate escolhendo aleatoriamente os
participantes do “teste”. São os participantes: Augustus Gloop, menino comilão, mal educado e desagradável que
entra na disputa por comer muito chocolate, o que lhe deu mais chances de
conseguir o tíquete, e por ter a oportunidade de comer mais e mais entrando na
fábrica. Violet Beauregarde, campeã mascadora de chicletes, apresenta uma
personalidade competitiva e arrogante entrando na disputa simplesmente pela
competição e por querer ganhar a todo custo. Veruca Salt, garota rica, mimada
que consegue tudo que quer, inclusive, através do poder aquisitivo do pai, um
tíquete dourado. Mike Teevee, menino viciado em vídeo games e eletrônicos em
geral. O último, mas não menos importante, Charlie Bucket, menino pobre e
inteligente, que consegue com muita dificuldade e sorte encontrar um tíquete
dourado, possibilitando a entrada de seu avô, que conhecia muitas histórias
sobre a fábrica.
Com uma
rápida análise dos personagens, podemos perceber que eles, exceto Charlie,
apresentam vícios, desvios de conduta, que vão ser criticados pelas músicas
cantadas pelos Oompa-Loompas, e vão ser castigados ao desobedecer as
regras impostas por Willy Wonka. Cada personagem, com seu “defeito”, representa
um pecado capital; o menino comilão representa a gula, a soberba é representada
pela menina arrogante e orgulhosa, o apego aos bens materiais e o prazer
material deixam Veruca Salt com
dois pecados: avareza e luxúria; quem também pode representar dois pecados
capitais é o menino Mike Teevee: ira e inveja.
Os personagens vão sendo eliminados do teste pelo abuso
desses “pecados”, como se fossem expulsos do paraíso. Ao desobedecer as regras
de Willy Wonka, recebem um castigo físico e moral. O primeiro personagem a ser
eliminado é Augustus Gloop. A
sua gula fez com que ele quebrasse a regra de não poder tocar no chocolate. Ao
desobedecer a regra, o menino cai em um rio de chocolate, é sugado por uma
máquina e Willy Wonka observa tudo tranquilamente enquanto os
Oompa-Loompas cantam uma canção:
Augustus Gloop, o comilão, um grande bobo trapalhão.
Augustus Gloop, tão grande e vil, desagradável e infantil. Já era tempo e sem
engano, de expulsá-lo pelo cano. Mas não precisam se alarmar, porque não vai se
machucar!, porque não vai se machucar! Nós temos que reconhecer, modificado
deve ser. As engrenagens vão girar, pra triturar e martelar. O porcalhão
descomunal vai ser amado, afinal, pois quem irá desmerecer um bom bocado de
glacê?
Violet
Beauregarde, com arrogância ignora o conselho dado por Willy e come um
chicletes ainda em fase de testes que a transforma em uma amora gigante. Os Oompa-Loompas
cantam novamente uma canção enquanto Willy Wonka parece não se importar.
Atenção, está no ar a senhorita Beauregarde, que não se
cansa de ficar mastigando, mastigando, mastigando sem parar. Mastigando sem
parar, mastigando sem parar, mastigando sem parar. A sua boca já inchou de
tanto que ela mastigou, bochechas grandes como um sino, o queixo igual a um
violino. Mastigando sem parar, mastigando sem parar, mastigando, mastigando,
mastigando sem parar. A cada dia crescem mais mandíbulas fenomenais, e com um
baita mordidão, ao meio a língua cortarão. Por isso a gente vai tentar salvar a
pobre Beauregarde. Mastigando sem parar, mastigando sem parar, mastigando,
mastigando, mastigando sem parar. Mastigando sem parar. Mastigando sem parar
Veruca Salt
pede ao pai um esquilo da fábrica de chocolates. No entando, Willy Wonka não
está disposto a vender, o que faz com que a menina esperneie pedindo ao pai,
que por sua vez não tem muito a fazer diante da situação. Ela decide roubar um
esquilo, mesmo contrariando Willy. O resultado é que ela é atacada por esses
esquilos, sem que ninguém faça nada em uma cena um tanto quanto violenta. Logo
depois há a canção feita especialmente para ela:
Veruca Salt, a sem-noção, desceu pra dentro do lixão. E
lá embaixo vai achar amigos novos pra brincar. Amigos novos pra brincar, amigos
novos pra brincar! Se quer exemplo, aqui vai um: cabeça e cauda de um atum; uma
ostra de um pirão qualquer; um bife que ninguém mais quer; e outras coisas sem
valor, mas todas com o seu fedor! Que fedor! É o que a Veruca vai achar: amigos
novos pra brincar! Que lá embaixo, vai achar! Quem é culpado por mimar e a
garota estragar? Quem é que não a educou? Quem é culpado? Quem errou? A culpa é
de quem já vai: da sua mãe e do seu pai!!!
Mike Teevee é
o último a ter seu castigo. Willy Wonka lhe mostra uma máquina que consegue
“teletransportar” uma barra de chocolate de um lugar a outro. Mike, mostrando
um comportamento acelerado e nervoso, invejando o invento de Wonka e
desprezando o fato dele não querer explorar mais seu invento, aplicando-o aos
seres humanos, resolve testar o equipamento em si mesmo, contrariando as
instruções do inventor. A máquina possuía dois problemas: é unidirecional e
todo corpo é diminuído nesse processo.
A coisa principal temos que dizer. A coisa principal que
diz respeito a todo aprendiz é, nunca permitir só ver televisão. Evite mesmo
instalar a idiotice no seu lar. Nunca, nunca deixe. Nunca, nunca deixe. Nunca,
nunca deixe. Nunca, nunca deixe. A mente faz apodrecer e as idéias perecer. E
ela vai te transformar num paspalhão bobão demais. Bobão demais! Bobão demais!
Se não consegue entender e as fábulas compreender. As fábulas! As fábulas! E a
memória supor e ser, travada, enferrujada até, não quer pensar, somente ver! E
quanto ao Mikezinho Teavee, nós lamentamos lhes dizer, que lástima! Só vamos
nos sentar e ver. Nós lamentamos lhes dizer, só vamos esperar e ver se ao seu
tamanho vai voltar, mas se não der... bem-feito está!
Enquanto as crianças são punidas por seu desrespeito, Willy
Wonka não esboça nenhuma reação de pena ou toma alguma atitude para ajudá-los
mostrando uma certa satisfação ao ver o sofrimento alheio. Willy Wonka é um
personagem extremamente sádico e irônico – tendo essa sua vertente irônica
explorada com frequência pelos usuários do facebook através de sua imagem
seguida de duas frases, uma questionando a outra em tom irônico.
Esse sadismo é causado por um transtorno de personalidade
que gera uma interpretação errônea de um estímulo externo, como acontece no momento
de recepção das crianças em que o teatro criado pra recebê-las pega fogo. Não é
uma cena magnífica como ele afirma ao final do teatro, é algo macabro e de mal
gosto, no entanto, ele se mostra entusiasmado com o resultado trágico. Ao ver
as crianças sendo castigadas, sua reação também não condiz com a de uma pessoa
“normal".
Os problemas com o pai na infância certamente influenciaram a
formação de seu caráter e no desenvolvimento desses transtornos psicológicos.
Seu comportamento antissocial e a falta de qualquer tipo de intimidade e afeto
com seres humanos é notado pelo seu comportamento esquivo e a falta de
proximidade com os visitantes da fábrica. Ele somente consegue criar uma
proximidade com Charlie, vencedor do teste, que se nega a abandonar a família
para se tornar dono da fábrica. Willy por várias vezes no filme relembra seu
passado através de atitudes de Charlie, sendo que ele é quem o liga ao passado
e faz com que ele consiga lidar com os problemas do presente.
Charlie não sofre nenhum castigo e por sua humildade acaba
vencendo a gincana proposta por Willy. No final das contas há uma espécie de
moral da história, os bons e humildes vencem, enquanto os pecadores, os
arrogantes e os desrespeitosos são punidos para aprenderem a lição. Isso não
desmerece a obra em si, mas pode ser levada para o lado da moral religiosa.
Algo parecido ocorre com “Auto da barca do inferno” de Gil Vicente, em que a
barca do Inferno vai lotada de personagens pecadores que, mesmo depois de
mortos, não se arrependem do que fizeram em vida. Ambas podem ser encaradas
como obras de tom moralizante.
O intuito do texto não é explorar nem se estender em
conceitos referentes à psicologia, mas analisar elementos que se relacionam
dentro de uma obra de uma maneira simples e acessível a quem quiser ver o filme
não só como entretenimento, mas como objeto de reflexão e aprendizado.
Cara, não vi o filme, então não posso "criticar" nem opinar sobre "isso ou aquilo" do texto. Mas a idéia de mostrar um outro lado do filme foi bem interessante, e como sempre, empregando muito bem as palavras.
ResponderExcluirEncontrar referências em uma obra é mostrar que as coisas não estão ali por acaso e que um filme ou uma música pode oferecer muito mais do que puro lazer e descontração. Valeu Dieguito pelo elogio hehe
ResponderExcluirAguarde os próximos textos.
Abrass
A Arte em geral, na maioria das vezes oferece muito mais do que lazer e descontração. Abraço meu querido.
ResponderExcluirMuito bom adorei!
ResponderExcluirMinha nossa, ao assistir ao filme que está passando hoje mesmo na TV, percebi a referência aos pecados capitais e vim conferir na internet. Por acaso, encontrei uma pessoa que completou minhas suspeitas. Muito obrigado pelo Post, sucesso!
ResponderExcluirParabéns pelo post. Incrível descrição. Perfeito.
ResponderExcluirAmei
ResponderExcluirAdorei
ResponderExcluirMuito boa descrição, vou ler o conto desse filme ,obrigado
ResponderExcluirAbraços
Acabei para em seu blig depois decteimar inumeras cezes que as crianças representavam os 7 pecados capitais. Vim pesquisar para ver se era loucura minha. Mas você foi além. Muito legal.
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