terça-feira, 20 de abril de 2010

PELAS CATRACAS

Segue então um dos contos que enfim vê a liberdade das gavetas empoeiradas da minha república.

Certa vez quando eu trabalhava no setor de contas de uma empresa me ocorreu um fato curioso. Não sei se devidamente curioso o que me aconteceu, mas diria que é algo que se deve ser contado, não sei se tirarão algo de proveitoso os leitores de minhas curiosidades, mas no momento o que me basta é contar-vos esse fato assaz interessante.
Como já disse, trabalhava em um setor de contas de uma empresa, que cobrava os senhores muito preocupados com seus outros deveres e muitas vezes se esqueciam de pagam suas dívidas com a minha empresa, e eu era o encarregado de cobrar-lhes. Digo minha empresa não porque ela era de fato minha, mas é porque não perdemos a mania de considerarmos o dos outros como sendo nossos também.
Bem, continuando, havia um senhor que eu deveria cobrar-lhe por algumas contas atrasadas. Já antecipo que o fato não está relacionado com o senhor que nos devia e sim com as circunstâncias que me envolveram no caminho.
A empresa situava-se no centro da cidade, cidade essa que não nos interessa o nome, deixemos as particularidades de lado, ou para quando for necessário. O nosso honorável devedor situava-se na zona sul da tal cidade e era necessário um coletivo que me levasse até o local. Pois bem, fui pegar aquele que me levaria até o local da cobrança.
Comecei a viagem que não era tão longa mas o calor a fazia mais demorada. Pela janela nada de mais, só o mais do mesmo de todos os dias. No meio do caminho foi que me ocorreu o tal fato que me ponho a contar. Não sei se por muita sorte do meu personagem ou se por muito meu azar, o coletivo em que estava quebrou, bem em frente ao ponto onde algumas pessoas subiam, não sabendo que dali não sairiam tão cedo.
Dentre as pessoas que ali entravam, entrava também meu personagem, talvez ficaria feliz em saber em saber que uma parcela de sua história está sendo contada por mim, ou nem tanto se soubesse o que penso sobre sua pessoa depois do que ocorreu.
Ele se pôs por último na fila dos passageiros, esperou todos passarem pela roleta e começou seu discurso. Era um homem pobre, talvez fosse um andarilho, morador de rua, ou qualquer coisa do tipo. Estava sujo e com os olhos mareados. Trazia um semblante sofrido, uma tristeza que não sei bem de onde nem bem porque, mas por um segundo chegou a me comover, as palavras que o acompanhavam traziam as mesmas dores.
Estava eu sentado à sétima fileira quando comecei a ouvir aquele senhor dizer tristemente suas palavras. Ele soubera naquela manhã que sua filha havia falecido e que gostaria de poder vê-la antes de ser enterrada, ela morava em outra cidade e que para visitá-la precisava do dinheiro da passagem que custava 25 contos e ele dispunha de somente 14 contos.
A história realmente era comovente, um homem querendo ver a filha falecida, uma filha que talvez não via há muito tempo. O velho chegou a ajoelhar-se e implorar para que o ajudassem. Comovido tirei um conto e dei-lhe, várias pessoas fizeram o mesmo, não contei mas creio que mais de dez pessoas o ajudaram naquele momento.
O homem recolheu o dinheiro arrecadado, foi descendo da condução já agradecendo a contribuição de todos quando o motorista pediu para que embarcássemos na condução que estava logo atrás e que seguia para o mesmo destino daquela que havia quebrado.
De pronto descemos e embarcamos na condução recomendada pelo motorista. Não estava da todo cheia, consegui um lugar para me sentar e já ia me preparando para recomeçar a viagem quando novamente o velho entrou, com o mesmo semblante triste e mesma história de filha falecida. Tudo bem que o velho continuasse a pedir ajuda para a visita póstuma, mas mesmo depois da ajuda recebida anteriormente ele ainda alegava necessitar dos 25 contos tendo somente os 14. Será que o velho não sabia contar? Será que tinha Alzheimer o homem que não se lembrava da esmola recebida a poucos minutos e ficaria pedindo a mesma quantia eternamente? A morte da filha seria só uma desculpa?
Confesso que senti uma séria desconfiança de que estava sendo enganado, era uma mistura de raiva com indignação, não pelo conto que lhe foi dado, mas de pensar que o velho teria utilizado a filha para abusar da boa vontade alheia.
O fato é que várias pessoas também o ajudaram. Teria sido constrangedor para o pobre homem se ele tivesse se dado conta de que eram praticamente as mesmas pessoas, mas ele estava muito concentrado em seu script que não percebeu algo tão irrelevante como esse.
O velho recolheu novamente as doações e ficou ali esperando o próximo ponto para poder descer. Fiquei intrigado em saber se o que ele contara era verdadeiro. Resolvi descer atrás do homem. Andei atrás dele por um tempo para ver se ele entraria em alguma outra condução, se entraria em algum boteco para gastar sua passagem com bebidas e jogos, fiquei observando-o.
Cansado de esperar por alguma reação que comprovasse minhas suspeitas resolvi abordá-lo para tirar toda aquela história a limpo. Perguntei-lhe se toda aquela história era verdadeira e ele me respondeu:
- Em partes sim. Minha filha já se foi e no dia eu fiz exatamente o que o senhor presenciou. Consegui uma boa quantia de dinheiro, enterrei minha filha e até hoje sobrevivo assim.
Fiquei chocado com aquele depoimento que acabara de ouvir e perguntei se ele não se sentia mal por enganar as pessoas com aquela história. Ele me olhou sinceramente e disse:
- Infelizmente para uns sobreviverem alguns tem que morrer, e às vezes morrem mais de uma vez.
Tirei mais alguns trocados do bolso, dei-os ao homem e segui meu caminho.

2 comentários:

  1. ó... Fudido esse, mas é do ÂMAGO da sua gaveta, pq eu tive o prazer de lê-lo quando ainda era um jovem manuscrito. =)

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  2. Me lembro desse texto!
    Excelente, por sinal!
    Ótimo blog, Dorfão!
    Saudades dos nosso "almoços filosóficos"!


    Abração!

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